
Histórias para contar e compartilhar é o que mais tem um jornalista. Quando falamos em alguém que está na profissão há mais de 50 anos, então, a conversa se torna uma aula.
Washington Novaes é um desses profissionais. Atualmente, é colunista dos jornais O Estado de São Paulo e O Popular, consultor de jornalismo na TV Cultura, documentarista e produtor de televisão, mas, para chegar aqui, a estrada foi longa.
Defensor dos temas ambientais e dos povos indígenas, Novaes faz parte da turma que foi parar no jornalismo meio sem querer, mas que se apaixonou pela profissão e nunca mais largou.
Em uma conversa, o jornalista conta como foi o início da carreira, as dificuldades enfrentadas, compartilha suas preocupações com o meio ambiente e dá dicas para a próxima geração do jornalismo.
Nexjor – Como foi o começo da sua carreira?
Washington Novaes – Eu era estudante de direito, trabalhava em um banco pra me sustentar em São Paulo e saí do banco porque precisava ter outro trabalho. Eu nunca tinha pensado em ser jornalista, mas precisava trabalhar e um companheiro de pensão sugeriu nós fazermos concurso. Nós fizemos no jornal A Última Hora um concurso para revisor. Acho que hoje não existe mais isso no jornal. O que fazia: os textos eram compostos na oficina e depois nós fazíamos as correções pra ver se o linotipista não tinha digitado errado. E fizemos o concurso, mas o jornal pagava muito pouco. Aí soube que a Folha estava fazendo também para revisor; então, fiz para Folha, passei e fui trabalhar como revisor na Folha que nessa época se chamava Folha da Manhã, não tinham unificado ainda. Então, tinha Folha da Manhã, Folha da Tarde e Folha da Noite. Eu trabalhava à noite. Entrava às nove da noite e ficava até as três horas da manhã fazendo revisões; depois, oito horas da manhã tinha que estar na faculdade. Trabalhei uns dois ou três meses na revisão, e o jornalista que havia dirigido aquele concurso, Aloysio Biondi, que cuidava do noticiário da parte de interior e dos outros estados na Folha, tinha visto meu teste, gostado. E ele, no fim de uns dois meses, me convidou para trabalhar com ele na redação, já como redator, como se chamava na época. E eu fui trabalhar e isso foi uma sorte imensa, porque o Aloysio é, certamente, um dos maiores jornalistas que já houve no Brasil, ele já morreu. Eu aprendi muito com o Aloysio e comecei ali meu trabalho como redator. Em seguida, eu fui convidado pelo secretário da Folha da Manhã, que se chamava Mário Lobo e que também já morreu, para trabalhar com ele também como redator na Folha da Manhã. E esse foi o meu começo, em 1956.
Nexjor – Quais foram as maiores dificuldades desse início?
Washington Novaes – Não sei, eu não me lembro exatamente de dificuldades. Foi tão bom, eu aprendi tanto. A dificuldade, que eu diria, era de horário, trabalhar das nove da noite às três da madrugada e depois entrar às oito na faculdade. Eu só dormia no fim de semana.
Nexjor – Sua primeira opção foi direito. Por que a troca?
Washington Novaes – Esse começo foi em 1956. Eu já estava no quarto ano da Faculdade de Direito e, em 1957, então, teve o concurso e eu fiquei muito em dúvida sobre o que eu iria fazer, se eu iria deixar o jornalismo e trabalhar como advogado. Fiquei durante um tempo tentando conciliar as duas coisas. Eu trabalhava de manhã e à noite no jornal e à tarde trabalhava em um escritório de advocacia. E assim eu fiquei uns dois anos mais ou menos, mas no fim desse tempo eu cheguei à conclusão de que eu queria mesmo era ser jornalista, não queria ser advogado. Deixei a advocacia, fiquei só com o jornalismo.
Nexjor – Como foi ser jornalista na época da ditadura militar?
Washington Novaes – Foi muito difícil. Em 1964, quando houve o golpe militar, eu estava na Folha de novo, porque, depois da Folha eu fui pro Estadão. Trabalhei uns dois anos lá, depois eu fui pra revista Visão. Quando eu estava na revista Visão, o Cláudio Abrão, um extraordinário jornalista, assumiu a direção da Folha e me convidou para trabalhar com ele como editor assistente, e eu fui. Mas no ano seguinte eu já fui pro Rio de Janeiro, mudei pra lá e assumi a direção da Folha lá, enquanto eu continuei na revista Visão, onde eu trabalhava também. Tinha dois trabalhos. Era um tempo muito difícil, mas tem dois períodos diferentes. De 64 a 68 foi um período difícil, os militares interferiam muito, mas junto aos donos de jornal principalmente. Em dezembro de 68, houve o ato institucional número 5, quando começou a dureza. Eles chegaram a colocar censores nas redações para dizer o que podia e o que não podia. E proibiam isso, proibiam aquilo. Eu lembro de que, quando censuravam o Estadão, o jornal não punha nada. No lugar punha uma receita de cozinha ou então um poema de Camões, alguma coisa assim. Mas foi muito difícil porque tudo era censurado, nada podia, tudo era considerado ofensivo, esquerdista, comunista. Quando chegou em 73, eu estava muito cansado dessa coisa, porque o jornalista vai ficando muito estéril, nada pode; então, eu resolvi deixar a imprensa escrita e tentar a televisão. Embora a censura também fosse muito forte, havia um aprendizado novo, uma técnica. Trabalhei primeiro na TV Rio e, em seguida, fui convidado pela TV Globo, fui pro Globo Repórter e logo fui nomeado editor chefe. E era também difícil. Nós tínhamos que mandar primeiro o script do programa pra Polícia Federal com alguns dias de antecedência e eles examinavam. Depois, quando o programa ficava pronto, iam dois censores lá pra ver o programa pronto e ver se podia ou não ir ao ar, cortar alguma coisa. Às vezes proibiam programas inteiros.
Nexjor – O Globo Repórter tem a característica de focar problemas ambientais. Foi nessa época que começaram a surgir as suas preocupações com essas questões?
Washington Novaes – Na verdade, a preocupação com o meio ambiente faz parte, um pouco, da história da minha vida. Eu nasci no interior de São Paulo, numa região de transição, entre a Mata Atlântica e o serrado. Já na minha infância, comecei a ver o serrado ser destruído, primeiro com a cana-de-açúcar e, em seguida, com a chegada da soja. Fui vendo também a modificação que acontecia no clima, na temperatura, no regime de chuvas, e isso já foi chamando a minha atenção. Na década de 60 eu comecei a escrever sobre essas coisas que hoje se chama de questão ambiental. O Globo Repórter também acentuou essas preocupações, porque era um dos temas principais, e eu também saía para dirigir alguns programas, alguns documentários, principalmente na Amazônia. Eu tinha muito interesse e comecei a acompanhar bem a questão do desmatamento na Amazônia, a construção da Transamazônica. Depois, em 82, eu mudei pra Goiás; fui dirigir um jornal e, desde então, eu acompanho esse desmatamento espantoso do serrado, praticamente o desaparecimento. Então, é uma história de vida e profissão.
Nexjor – Como você vê a forma atual de fazer jornalismo?
Washington Novaes – Eu acho que o jornalismo, hoje, não está numa fase de que eu goste muito. Eu acho que o jornalismo está muito atrelado ao que se chama de formato hollywoodiano, buscando formatos que provoquem grandes emoções e que, por sua vez, gerem índices de audiência na televisão, índices de leitura no jornal e, depois, passado o episódio, não interessa mais. Isso acaba desviando o foco do jornalismo, de muitas das questões mais importantes e há uma distorção no formato do jornalismo. Então, acho que é um momento difícil do jornalismo.
Nexjor – E, quanto ao meio ambiente, o que falta ser feito para que as pessoas comecem a respeitá-lo da forma que se deve?
Washington Novaes – Informação. Falta informação sobre a extensão real dos problemas, de onde eles nascem e como eles têm que ser enfrentados. A comunicação teria que informar a sociedade de onde estão surgindo os problemas, como eles começam e cobrar do poder público que atuasse de outra forma. E, também, eu acho que, nessa matéria chamada de meio ambiente, a posição da sociedade brasileira eu tenho chamado de retórica indignada. Quando as coisas acontecem, todo mundo fica indignado. Aliás, vivem indignados com corrupção do poder público, mas essa retórica não leva a nada, fica na retórica, enquanto tudo continua acontecendo da mesma forma. Então, precisaria informar a sociedade melhor para que ela também aprendesse a se organizar, a discutir assuntos, a criar plataformas políticas e a levar isso pra frente. Não tem outra solução, é na política que isso tem que ser resolvido.
Nexjor – Que conselhos você dá para um jovem jornalista que está começando a carreira? Existe um “por onde começar”?
Washington Novaes – Eu sempre conto uma história do meu começo no jornalismo, quando, na segunda ou terceira função que eu exerci na Folha, eu fui convidado por um jornalista chamado Mario de Araújo, que era um homem muito competente: ele era pra ser o secretário geral da Folha da Manhã e me convidou pra ir trabalhar com ele como redator e eu fui, e aprendi muito com ele. Em um dia, ele me entregou para reescrever uma matéria de um repórter: era a história de um homem que havia ficado desempregado e, no desespero, matou a tiro quatro filhos, a mulher, e com a última bala, a sexta, ele se suicidou. Então, eu reescrevi a matéria e, nessa época, não havia nem diagramação no jornal, as páginas eram feitas lá na oficina, depois de o material composto nas linotipos. Então, eu vi quando o Lobo marcou no original e escreveu, numa coluna, página 14. Aí eu perguntei: “Lobo, uma notícia dessas e você vai dar escondida numa coluna lá na página 14?”. Ele me olhou muito sério e disse: “Vou, por quê? Você faria o quê?”. Eu falei: “Ah, se dependesse de mim, eu daria na primeira página com muito destaque.” Ele falou: “E por que você faria isso?” e eu respondi “Ué, porque eu acho que é uma notícia muito representativa dos dramas sociais que a gente vive, do desemprego e dessas coisas e acho que seria bom chamar a atenção pra isto aí.” Ele falou: “Olha, eu não sei; pode ser que você tenha razão, mas, quando eu era secretário da Folha da Tarde, um dia apareceu uma notícia exatamente igual a essa: um homem que matou a mulher e os filhos e se suicidou porque tinha ficado desempregado. E eu fiz o que você está dizendo que faria, botei na primeira página da Folha, com muito destaque. E, nos dias que se seguiram, apareceram várias outras notícias iguais a essa aí. Eu nunca vou poder saber se algumas dessas outras pessoas leram essa notícia e ali encontraram o seu caminho, mas eu também não tenho coragem de fazer isso que você disse que você faria. Eu acho que pode influenciar. Mas eu também não estou aqui pra mentir informação. Então, eu dou esta solução, ponho lá dentro com discrição em uma coluna com pouco destaque. Quem tiver outra solução, eu estou disposto a discutir.” Essa conversa marcou como um “ferro em brasa” a minha vida profissional, porque ela me chamou a atenção para uma coisa que eu não tinha pensado até então, que é a responsabilidade pessoal do jornalista, quer dizer, não é a empresa, não tem nada a ver com censura, não tem nada a ver com nada. São as suas escolhas pessoais influenciando na vida das pessoas e determinando coisas na sua vida. E, se você olhar os jornais, a televisão todo dia, você vê que podem ter vidas arruinadas, um patrimônio arruinado, a honra pessoal. Então, essa questão da responsabilidade pessoal do jornalista é uma coisa que me marcou muito fundo e ao longo da vida eu tentei trabalhar pensando nisso. Qual é a consequência daquilo que eu estou fazendo? Que repercussão isso pode ter? Que influências isso pode ter? E eu acho que isso não é ensinado para os jornalistas, essa é uma responsabilidade pessoal deles, não é da empresa, não é do governo, não é da censura, não é de censura econômica, não é de nada. É o que você faz, você escolhe esta notícia, coloca ali, e acontece o quê? Como isso atinge as pessoas? Tanto as que são objetos da notícia, como as que leem. E eu acho que os jornalistas precisam pensar muito nisso e no que acontece com o seu trabalho. E isso vale para o meio ambiente, para o noticiário policial que domina o mundo, que domina a comunicação hoje, eu acho que precisa isso. Eu acho que os jornalistas precisam pensar muito nisso.
