Cavalo de Guerra

[xrr rating= 2,5/5]

O cinema sendo justificado, o que seria uma novidade, ou algo absolutamente com poucos precedentes. Quando se fala em “Cavalo de Guerra”, o que mais se lembra é que “Spielberg decidiu fazer uma homenagem ao cinema clássico”, e é isso que se lembra a todo instante, como se fosse um à parte. Spielberg fez um filme sem maldades, reverencia sentimentos nobres, não usa violência, é engrandecedor mas tem desculpas para construir seu filme assim. Afinal, ele está emulando outro estilo. Não deveria incomodar, mas incomoda, talvez pelo fato de que, olhando para trás, percebermos que cada época teve seu princípio, meio e fim, e justamente esse constante passar do tempo acabou fazendo com que o cinema se transformasse. Não foi o cinema dos anos 70, então, que marcou tanto justamente porque o público não comprava mais o estilo dos filmes clássicos dos anos 40 e 50?

Só que o cinema não tem essa lógica coerente porque não é uma ciência exata. Fosse assim, filmes clássicos não teriam público hoje. O que causa um certo estranhamento é ver uma produção atual ser justificada como uma emulação do passado. Se ninguém justificasse essa homenagem, “Cavalo de Guerra” seria chamado de pueril e paternalista. Como essa visão é justificada, ela é, então aceitável? São visões que não se completam, e é em cima delas que a crítica tem defendido ou batido no filme.

Não é assim, ou não deveria ser assim. Antes de qualquer coisa, “Cavalo de Guerra” não é um filme ruim. O fato de não retornar à crueza de outras visões de guerra – até porque o próprio diretor diz que seu filme não é sobre a guerra – não deveria ser um diminuidor das qualidades de um filme. “Cavalo de Guerra” esconde de forma obsessiva a morte, apesar de lidar com ela em seus entornos e ao longo de toda a projeção. Todos morrem ao redor de Joey, o cavalo que o pai do jovem Albert adquire de forma irresponsável e que acaba sendo levado para a guerra. O garoto que só conhecia a vida no campo resolve encarar a morte, metralhadoras, gases, ratos, trincheiras, sujeira e doenças na primeira guerra mundial para encontrar e trazer seu animal de volta. O argumento – que poderia basear um filme com qualquer animal ou fazer sucesso com Lassie nos anos 40 – do livro de Michael Morpurgo que encantou Spielberg em sua encenação teatral é uma desculpa perfeita para alguns dogmas do antigo cinema americano da metade do século. Desfilam por ele dezenas de personagens secundários que interagem com a coluna central da história, muitos deles funcionando como consciência do próprio público. O porém é que, para os planos de Spielberg, não deixa de ser um tanto decepcionante que a história e as relações em si emocionem menos do que a própria homenagem que move a produção. O cinéfilo vai emocionar-se mais com as homenagens – principalmente nas cenas finais – ao cinema do que com a própria história. Muito, também, porque não há tempo de o espectador realmente se identificar com os personagens que cruzam a trajetória de Joey, o cavalo. Em parte pelo tempo destinado a eles, de outra parte por um certo maniqueísmo na forma como eles separam-se de seus pares para identificarem-se com os ideais nobres exigidos pela história

Talvez a culpa seja, em parte, de seu protagonista, já que Jeremy Irvine não consegue empatia suficiente para que o público se envolva emocionalmente. O cavalo é, no fim, o grande personagem, com momentos de puro lirismo fantástico, agindo e reagindo como um ser humano. Nada mais comum aos filmes que o próprio Spielberg deve ter se criado assistindo em matinês e ele tanto quis homenagear. Mas uma história que quer acima de tudo empatia e emoção – ao contrário de um filme como O Espião que Sabia Demais – precisa ter o público ao seu lado. Irvine e a própria brevidade das relações passageiras não permite.

Há um outro porém: cada obra se caracteriza por trazer marcas do tempo em que foram feitas. A inocência moral e o didatismo de caráter de alguns desses filmes são reflexos não da sociedade de sua época – ela é bem mais cínica longe dos meios de comunicação de massa, mesmo em tempos passados – mas da forma como a sociedade (queria) se ver. Emular, portanto, esse sentimento em uma sociedade muito mais cínica e carente desses valores pode causar estranhamento. E Spielberg fez de Cavalo de Guerra um filme sobre paz – não por acaso os personagens que cruzam o caminho de Joey são alemães, britânicos, franceses, americanos. O diretor pretende mostrar que não há pré-julgamentos nem pós-julgamentos que possam ser estereotipados a nações inteiras, como se dissesse que não são as pessoas que devem ser culpadas pela guerra, mas a política das nações e as decisões maiores. E isso torna-se claro em uma cena em que um alemão e um britânico ajudam-se para libertar Joey dos arames farpados na chamada “Terra de ninguém” entre trincheiras. Se ele não poupa alguns desses personagens de um destino inevitável, acaba poupando o público de ver seus destinos. A guerra cruza a tela e suja o chão, mas não há sangue.

No filme em que Spielberg busca falar de amizade, paz e do fim de um tempo que encerrou-se com atraso – a guerra do cavalheirismo, do século que acabara de terminar, ainda demoraria 18 anos para ser completamente aniquilada com a brutalidade da segunda guerra mundial – o diretor faz uma A homenagem final aos clássicos que é tocante em sua forma – o domínio da cinematografia e a fotografia de Janusz Kaminski – mas a emoção que vem do filme de Spielberg aflora unicamente da relação entre o público e os personagens e não como resultado da interação do que se vê em tela. É um filme belíssimo, mas que ressoa, em muitas ocasiões, o fato de ser uma cópia intencional, e não um produto natural.

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