Conversão das áreas campestres para a agricultura é o principal motivo de uma possível extinção do bioma
Reportagem: Júlia Kopp e João Dallastra
Também conhecido como Campos do Sul ou Campos Sulinos, o Pampa é predominante no Uruguai e ocupa uma parte da Argentina, se estendendo até o Brasil. Desde 2019, quando o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) atualizou a área de abrangência do Pampa brasileiro, o bioma passou a equivaler a 2,3% do território nacional e a 69% do território do Rio Grande do Sul – único estado brasileiro onde é encontrado. O professor de Biologia da Universidade de Passo Fundo (UPF) e doutor em Botânica pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Cristiano Buzatto, explica o porquê dessa mudança na área de abrangência. “Até 2019 o Pampa ocupava a região sul do estado. A partir daquele ano, foi usada uma nova classificação. Com dados geológicos, principalmente do solo, mas também da composição de flora e fauna, mas ainda mais a flora, percebeu-se que a extensão do que conhecemos como pampa aumentou, tanto que a nova classificação chega à porção norte do estado. Antes era bem dividido ao meio e um pouco na região oeste como São Luiz Gonzaga. Com a nova classificação, até mesmo Passo Fundo e outras cidades da região fazem parte”, explica Buzzato.
O termo “Pampa” é uma palavra de origem indígena quéchua e significa “planície” ou “região plana”, cenário mais comum do bioma que justamente é predominantemente campestre. Ainda assim, matas ciliares, matas de encosta, banhados e formações pioneiras são encontradas no Pampa, que chega a reunir 9% de toda a biodiversidade brasileira. Apesar de ser o segundo menor bioma do país, o Pampa é o ecossistema com maior biodiversidade de plantas por metro quadrado.
No total são 12.503 espécies no bioma, incluindo plantas, fungos, bactérias e animais. Esses dados mostram que uma considerável parte da biodiversidade de todo o Brasil está concentrada relativamente em uma pequena porção do país, visto que o pampa equivale a um pouco mais de 2% do território nacional. Os dados foram revelados por um estudo liderado pelo Professor Gerhard Overbeck, da UFRGS, e pelos pesquisadores Bianca Ott Andrade, do Departamento de Botânica da mesma universidade, e William Dröse, do Departamento de Ciência e Tecnologia de Santa Catarina, do Instituto Federal de Educação em Chapecó.
“Quando se coloca um trator, se perde a história através de perder o solo”
Cláudia Petry
Ainda que diverso, o Pampa vem sofrendo com a devastação, em especial dos campos. No período de 36 anos, entre 1985 a 2021, a vegetação nativa do Pampa brasileiro foi dizimada em 3,4 milhões de hectares, conforme apontam dados do Mapbiomas. Esse número corresponde a um pouco menos que a área total da Bélgica ou a mais de três milhões de campos de futebol. Os dados são assustadores e tendem a crescer. Uma pesquisa realizada pela Universidade Federal do Pampa revelou que se o ritmo de ocupação humana continuar o mesmo que está atualmente, até 2043 não haverá mais Pampa no Brasil, resultado do avanço desenfreado da agricultura, principalmente para a produção de soja, que domina o Rio Grande do Sul.
A professora do curso de Agronomia da Universidade de Passo Fundo, doutora em Geografia pela Université Paris, Cláudia Petry, destaca que os danos não são apenas ambientais, mas também históricos. “O solo do pampa é o fóssil da terra. Um solo de pampa, que não foi feito agricultura, tem milhares de anos e quando passa um trator em cima isso é removido. O que antes em 20 centímetros tu podia fazer uma leitura de como foi a humanidade nos últimos milhares de anos, quando se coloca um trator, se perde a história através de perder o solo”, explica.
Para além, Petry diz que mais do que políticas públicas e recursos financeiros, que obviamente são necessários, a soja rastreada, a agricultura familiar e assentamentos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) são soluções sustentáveis para diminuir a drástica devastação do Pampa. A professora acredita que a sociedade tem que ser pessimista para entender que é grave a situação do Pampa, mas que é necessário ter o mínimo de otimismo para poder agir.
Poucas áreas de Unidades de Conservação facilitam a conversão, maior motivo da devastação do Pampa
O Pampa é, atualmente, o segundo bioma brasileiro que mais perde vegetação nativa em termos proporcionais. Entre 1985 a 2022, 24% de formações naturais não florestais foram convertidas em área de agropecuária, atrás apenas do Cerrado, com 25% da vegetação nativa devastada. Resultado justamente dessa conversão do campo para a agricultura e do Pampa ser o bioma com a menor área de unidades de conservação (UCs) do país, no total chega a apenas 3%. Buzatto explica que por causa disso as pessoas fazem a troca da pecuária para a agricultura com maior facilidade. “As conversões têm acontecido muito forte e o Pampa perde muito dos seus espaços porque tem menos unidades de conservação em comparação aos outros biomas. Sem as UCs, as pessoas fazem a troca da pecuária para a agricultura sem preocupação alguma com fiscalização.” Segundo o professor, é “fácil” converter uma área de campo para plantio, é necessário fazer um tratamento de solo para entrar com as culturas, mas isso acaba com a tradição da pecuária e se transforma em monocultura. Com a monocultura, da soja por exemplo, mudanças drásticas quanto a biodiversidade começaram a surgir e isso complica toda a conservação direta da flora e toda a fauna que está associada a ela.
“Para o ambiente voltar a ser como era antes não vai ser tão rápido como a gente destruiu, vai ser um processo lento”
Cristiano Buzatto
Mais recentemente o bioma enfrentou tempos difíceis, apesar de ter Áreas de Proteção Permanente (APPs), que são previstas por lei, os licenciamentos eram feitos de qualquer jeito, sem muito cuidado e isso possibilitou que muitas pessoas mudassem sua opção de uso da área e realizassem a conversão. Essa redução de áreas preservadas ficou ainda menor. Não só o campo sofre com essa devastação, mas a biodiversidade também, devido ao ritmo acelerado da conversão.

A perda de espécies que não foram catalogadas também é outra realidade, espécies que poderiam ter potencial medicinal, por exemplo, sequer foram descobertas e jamais serão. Espécies que já são conhecidas e essenciais para a funcionalidade do planeta também estão sendo afetadas. É o caso das abelhas. Em 2022, ao menos 3 milhões de abelhas foram encontradas mortas em Alegrete num único dia. “As pessoas acham que as flores não tem muito valor, mas as abelhas dependem de flores nativas do pampa. O começo da cadeia alimentar depende desse mato campestre. Mato não é uma coisa ruim, a gente tá acostumado porque fala “ah tem que tirar esse mato”, acho que é por isso que a gente tem isso de desmatar tão fácil, é uma relação tão triste”, comenta Petry.
Mas é possível recuperar a área devastada. Para isso é preciso contar com a ajuda do próprio ser humano, e aguardar que a própria natureza faça o seu trabalho. Para o professor Buzatto, falar de recuperação é complicado, pois tudo que se tem no Pampa foi resultado de um processo evolutivo lento, onde essas espécies de animais, de vegetais e todos os seres vivos conseguiram se adaptar. “Nós humanos aceleramos tudo e estamos em uma grande fase de extinção novamente, mas muitas espécies não tem como recuperar. Para o ambiente voltar a ser como era antes não vai ser tão rápido como a gente destruiu, vai ser um processo lento. Quando isso vai acontecer? Vai depender muito de cada ser humano para fazer sua parte também”, avalia. O professor comenta, ainda, que existem diversos trabalhos voltados para recuperação de áreas degradadas. “Mas hoje uma das principais formas que a gente vê para recuperação é deixar que a natureza faça seu serviço igual fez nesses milhares de anos. Então isola a área e deixa ela fazer seu processo, mas tendo em mente que a área voltar a ser como era não vai acontecer e, claro, que vai ser um processo demorado”, considera.
