União e fé: o que são as “Khassidas”

Durante um dia de celebrações, a comunidade senegalesa em todo o mundo, se reúne para homenagear as Khassaides, de Amadou Bamba.

Reportagem por Alexandre Marcheze, Eliana Presser, Fernanda Machado e Hana Backes

5 mil e 200 quilômetros separam Passo Fundo do Senegal. Um país onde 95% da população é muçulmana. Uma sociedade multifacetada com diversas ramificações éticas presentes. Três grandes irmandades se dividem dentro da sociedade religiosa senegalesa, sendo elas: os laye, tidjane e os mourides. Esse último, são a maior irmandade presente no dia a dia do Senegal. Além das diversas irmandades religiosas, o país também conta com uma variedade linguística, tem como língua oficial o francês, mas a maioria da população prefere se comunicar através do wolof, língua de um dos grupos étnico de mesmo nome.

Dentro da irmandade dos mourides, existe uma subdivisão chamada “Baye Fall”. Com características próprias. De cabelos compridos e dreadlocks, roupas caseiras, colares feitos de contas de oração e muitos amuletos pendurados pelo corpo, os Baye Fall chamam atenção nas ruas do Senegal. Eles levam muito em conta a generosidade, a tolerância e a paz, por isso acreditam que a religião deveria ser desapegada de todos os bens materiais. É comum entre os membros da cultura Baye Fall se escutar: “tudo se divide”.

No Senegal é muito comum acolher pessoas da mesma ou de diferente nacionalidade, seja oferecendo moradia ou refeições. As crianças também são cuidadas por todos, mesmo assim sabe-se quem são seus pais e familiares, o que acaba formando um caráter humilde e forte que segue na vida adulta.

Essa hospitalidade e honra do povo senegalês, chama-se Tèranga. E vale para o que acontece no Senegal ou fora dele. Todo lugar em que tem uma comunidade senegalesa pelo mundo, a Tèranga é praticada. Segundo o professor da UPF, Frederico Santo dos Santos, doutor em Antropologia Social pela UFSCar, que estuda a cultura senegalesa, é corriqueiro membros da mesma família viverem em países diferentes, desde pequenos os senegaleses são ensinados a ter uma capacidade de adaptação aos diferentes lugares que vão estar. No entanto, o professor Frederico alerta que é um equívoco dizer que eles são nômades, eles são transmigrantes. “O senegalês acredita que todo lugar é dele, assim leva sua religião, devoção e cultura para onde for. Já o nômade não, ele simplesmente se adapta ao local que convive. Em todo lugar que tem comunidades senegalesas existem as Dahiras, que são espaços de construção de sociabilidade, essencialmente mouride, responsáveis por organizar localmente as atividades religiosas dos fiéis.”

A cultura do povo senegalês é marcada por luta e resistência. Amadou Bamba, também conhecido como Serigne Touba, foi o fundador da irmandade mouride, que tem como Touba a cidade sagrada. O líder religioso liderou uma luta pacifista contra o império colonial francês. Viajando pelo oceano Atlântico sem travar uma guerra aberta aos franceses, assim como a outra irmandade proeminente do Senegal, os Tidjane. Os ensinamentos de Amadou Bamba enfatizam o pacifismo, trabalho duro e boas maneiras. A cidade de Touba foi fundada por ele em 1887, com o propósito de conciliar o espiritual e o temporal. 

Conforme o antropólogo, Bamba passou a incorporar uma nova forma de resistência não violenta contra os objetivos dos colonizadores franceses. O exército francês e o governo colonial francês estavam cansados ​​de líderes muçulmanos incitar revoltas ao terminarem de tomar o Senegal. Dessa forma decidiram exilar o líder religioso na floresta equatorial do Gabão, onde permaneceu por sete anos e nove meses. Neste exílio, Bamba escreveu poemas, que são chamadas de Khassidas, que até hoje são cantadas pelos mourides pelo mundo.

AS ‘KHASSIDAS’

Faladas como ‘rassidas’, as khassidas são os poemas escritos por Amadou Bamba durante o seu período de exílio, um período em que ele não tinha o espaço adequado para realizar suas orações diárias, e para seguir com sua fé, começou a escrevê-las. Acredita-se que foram escritas aproximadamente 7,7 toneladas de papel, em forma de poemas. Sendo tantas, é quase impossível conhecer todas elas, mas o que está presente em tudo que envolve as Khassidas é o louvor e a adoração a Allah, o Deus da religião islâmica. 

Moustapha Diagne

O movimento em torno desses poemas não é ligado apenas à escrita, mas também à leitura, interpretação, entonação das khassidas como cânticos de adoração. A religiosidade relacionada aos poemas vem muito da conexão que as pessoas têm com o cantar das khassidas. 

Esse ato de cantar é feito pelo Kourel Khassida, formado por um grupo de cantores que ensaiam e forçam a voz ao máximo para honrar os poemas. Em eventos como a Journée Khassida Touba, os integrantes do Kourel cantam ao longo do dia, revezando entre grupos de diversas regiões, e quem está ao redor acompanha pela leitura.

Cheikh Bou Mohamed Dia

Para o senegalês Moustapha Diagne, morador de Passo Fundo há dez anos, esse dia é apenas uma pequena parcela do que a comunidade pode fazer para retribuir tudo que Amadou Bamba fez por eles. “Esse dia é muito importante para nós, por tudo que ele fez para o nosso povo. Esse dia é uma homenagem para ele.”, afirma ele.

Já para o Cheikh Bou Mohamed Dia, também morador de Passo Fundo, foi difícil de explicar qual a importância das khassidas em sua vida, é um sentimento difícil de nominar. “Eu não consigo explicar o que eu sinto, a sensação que isso me traz. O que eu sei é que é algo profundo, que não tem explicação, e que me emociona.”, ressalta Mohamed Dia.

QUANDO AS KHASSIDAS SÃO CELEBRADAS

No último sábado (18) aconteceu em Passo Fundo a 6ª Journée Khassida Touba, uma celebração religiosa característica da irmandade Mourid, uma das irmandades da população muçulmana do Senegal. Se reuniram na Universidade de Passo Fundo cerca de 600 senegaleses, para celebrar e orar, além de inúmeros moradores locais, que vieram conhecer um pouco mais dessa cultura. É a primeira vez dentre as seis edições realizadas no Brasil a acontecer dentro de uma universidade. Ao longo do dia o povo senegalês demonstrou sua fé através de orações, cânticos, caminhada, que  tem o intuito de mostrar para cidade que eles existem e estão presentes aqui. 

As Journée Khassida Touba são uma celebração que acontecem anual e simultaneamente, sem uma data fixa, em todo mundo. Nela os discípulos de Amadou Bamba, grande líder religioso do Senegal, homenageiam os seus escritos durante um dos exílios, as Khassaides. 

Durante toda a celebração, sentimos a conexão entre nossos dois países, a bagagem cultural trazida do Senegal de cada um deles com a mistura do jeito brasileiro. Dois países e duas culturas com diversidades compartilhadas além das fronteiras, mostram para a gente que devemos aprender um com o outro. Celebrações como esta fazem-nos lembrar que o diferente não deve ser visto como místico, e que surgimos e fazemos parte de uma mesma irmandade.

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