
A história que vou contar agora é áspera para mim. Para você talvez seja apenas mais uma história, dessas que pouca importância tem. Mas a verdade é que naqueles olhinhos, de quase 100 anos, muita coisa se passa, muito além, daquilo que podemos imaginar.
Conheci dona Maria não lembro dia nem o mês, sei que foi em 2007. Por um acaso da vida, essa mulher me mostrou que as dificuldades aparecem com um único propósito: fazer-nos ser fortes. Foi difícil ouvir a história dela e não largar uma lágrima. Eu sabia que não podia chorar, tinha que me segurar, mas foi impossível. Ainda mais quando ela também encheu os olhinhos de água.
Cheguei á casa onde Dona Maria reside, foi numa tarde de sábado. Entrei, sentei-me numa poltrona e esperei. O enfermeiro foi buscá-la. De cadeira de rodas, com uma expressão assustada, lhe abracei e perguntei: “Dona Maria, a senhora sabe quem sou? Olhou-me fixamente, com cara de quem estava tentando adivinhar quem eu era, porque lembrar, ela já não conseguia mais. Com muita dificuldade, disse que sim. Eu estava cheia de coisas para conversar, mas tinha um obstáculo que era maior que isso: Dona Maria só entende e fala italiano. Filha de imigrantes, o dialeto é algo que jamais se perdeu de seus aprendizados. Eu também sou gringa. O pouco que entendo e sei falar a língua italiana, ajudou a nossa comunicação. Fomos conversando calmamente para eu conseguir entender o que ela falava. Ela tem dificuldades para falar e as respostas são grandes.

Dona Maria perdeu a mãe com 12 anos; o pai com 17. Aos 18 teve meningite. Ficou com apenas uma sequela: balançava a cabeça sem parar. Por isso, não “prestava pra casar”. Ficou solteira, para o resto da vida. Seu irmão mais velho casou, levou dona Maria para morar com ele. Aos 30, ela já não balançava a cabeça. Estava boa. Ajudou a criar seus oito sobrinhos. Trabalhava muito, ia à roça, cortava soja, tirava leite, quebrava milho, arrancava mandioca. O tempo foi passando. Seus sobrinhos cresceram. Um deles casou. Nessa época, seu irmão e sua cunhada faleceram. Dona Maria, foi morar com seu sobrinho, agora casado. Sua sobrinha teve duas meninas e ela, mais uma vez, ajudou a criá-las. Mas aí, foi envelhecendo. Já não conseguia mais trabalhar da mesma maneira que trabalhava. Estava lenta, não rendia tanto.
“Giorni avevano pianto che né la pioggia”. Sim, tinha dias que ela chorava que nem a chuva. Quando falou isso, seus olhinhos se encheram de lágrimas. Eu tentei, por várias vezes mudar de assunto, mas toda vez ela arrumava um argumento para falar daquele passado que parece lhe perseguir. “Mas agora a senhora está bem, não é mesmo?” “Sim, estou. Gosto de ficar aqui”, e abaixou a cabeça. Ela se refere ao lugar onde vive há sete anos.
Sua sobrinha, nunca entendeu muito bem o que era a velhice. Dona Maria lembra até hoje o primeiro tapa que levou no rosto. Tinha 74 anos. Depois, tudo foi piorando. Os tapas passaram para varadas. Você já apanhou de vara? Eu já. Sei muito bem como dói, mas ela sabe mais ainda. Mesmo assim, continuava fazendo o trabalho que conseguia: juntava ovo, lascava lenha, varia terreiro. Mas tudo isso, não prestava para a sobrinha. Dona Maria contou que um dia estava subindo escadas, cheia de lenha nos braços, levando para dentro de casa, quando a sobrinha lhe empurrou. Ela conta que se machucou por fora, mas por dentro, ela morreu. Enquanto isso, eu engolia o choro. Não queria demonstrar minha comoção.
A expressão assutada que Dona Maria tem, vai ficar para sempre. O medo, a humilhação, a dor que ela passou, são cicatrizes que estão marcadas pra sempre em sua vida. Afinal não só apanhava, como recebia xingamentos aterrorizadores. Foi até ameçada de morte. Mas aí, seus sobrinhos “cansaram” dela e colocaram em um resguardo.

As horas da tarde passaram muito rápido. Disse a ela que precisava ir. Me olhou com uma carinha triste e disse: “Mas já?” “Sim, eu preciso ir. Mas voltarei mais seguido para vê-la”. Abriu um sorriso e seus olhinhos brilharam. Foi difícil sair de lá. Meu coração estava destruído.
Sabe, Dona Maria me fez ir pra casa refletindo sobre a vida. Até que ponto o ser humano é racional? Afinal, o que somos na vida? Sinceramente tentei por várias vezes buscar respostas para essas perguntas, mas não encontrei. Mas uma certeza tenho: quero continuar contando histórias como a dela. As pessoas merecem serem ouvidas. Todos temos uma história a qual queremos contar a alguém. Dona Maria estava só esperando uma oportunidade de contar a sua. E ela veio quase aos 100 anos.
