Porto Alegre sediou, no último sábado (20), a sétima edição nacional do Dia da Khassida, com a participação de senegaleses muçulmanos de todas as partes do país e, até mesmo, da Argentina. A celebração contou com a cobertura do Jornalismo UPF.
Texto escrito por Ederson Castro de Avila, Fernando de Lima Bier, Milena Griebler e Catherine Mistura da Silva, sob supervisão da prof. Maria Joana Chaise
Muitas coisas separam o Brasil do Senegal. Milhares de quilômetros de água salgada, só para começar. Entretanto, há outros pontos que podem fazer até mesmo o Oceano Atlântico parecer pequeno. Considerando que a humanidade construiu civilizações inteiras baseadas em suas crenças, a questão religiosa ganha um certo peso. E o Senegal é um país muçulmano.
O islã foi fundado por Maomé, por volta do século VII, na Arábia. Junto ao judaísmo e ao cristianismo, o islã é uma das três grandes religiões abraâmicas monoteístas, ou seja, sua origem é reconhecida no profeta Abraão e seus fieis acreditam em um Deus único. Outro ponto em comum entre o cristianismo e o islã é que, assim como o primeiro, o segundo também possui variadas vertentes religiosas. Elas se desenvolveram em diferentes regiões do mundo islâmico e em diferentes épocas históricas e foram influenciadas por questões políticas e sociais vivenciadas por seus fieis, criando diversas interpretações do Alcorão, o seu livro sagrado, onde os muçulmanos acreditam estar a forma literal da palavra de Deus, revelada ao profeta Maomé. Cada uma delas evidencia diferentes aspectos da fé islâmica.
No Senegal, em meados do século XIX, surgiu o mouridismo, irmandade muçulmana fundada por Amadou Bamba. O mouridismo veio como resposta ao colonialismo francês. Bamba lutou, pacificamente, contra a imposição do cristianismo no país. Devido a isso, foi perseguido e exilado em 1895. Durante esse período, como não dispunha de um local adequado para fazer suas orações, começou a escrevê-las, em forma de poema. Nasciam aí as khassidas.Sua obra é marcada pela resistência ao colonialismo francês.
O povo senegalês é marcado pela cultura da migração. Espalhadas pelo mundo, as comunidades presentes em cada país realizam, anualmente a Journée Khassida, que é antes de mais nada, uma celebração religiosa. Durante um dia inteiro, eles entoam os escritos sagrados de Bamba, que são dedicados a Maomé e ao Alcorão. As rezas são feitas, essencialmente, pelos homens. São eles que interpretam os poemas. Ao longo da celebração, as delegações de senegaleses presentes se revezam para formar o Kourel Khassida, círculo que conduz a cerimônia, enquanto o restante dos fieis acompanha.

Mais de mil pessoas na sétima edição nacional
A celebração aconteceu no prédio do Grêmio 7 de Setembro, no centro histórico de Porto Alegre. A programação iniciou às 7h da manhã, se estendendo até 20h. A Journée, entretanto, não aconteceu num templo a portas fechadas. Ela começou na rua, partindo do Mercado Público até a Avenida Padre Tomé, o primeiro momento da celebração foi uma passeata. Eles queriam ser vistos. Mas mais do que isso, eles queriam mostrar o caminho. Segundo o imigrante Ahmadou Beye, que vive há cinco anos em São Paulo, a parada serve como uma introdução à Journée. “A gente
não tá no nosso país, na nossa terra. Para poder explicar o que a comunidade
senegalesa está fazendo temos que sair na rua”.
Desfilando pelo centro da capital gaúcha, a celebração era dos senegaleses, mas Porto Alegre inteira estava convidada. “É a nossa forma de mostrar o que estamos fazendo e onde estamos fazendo”, pontua. Beye explica ainda que para eles, estar longe do Senegal não os impede de seguir praticando seus costumes. “Nossa religião não depende do lugar, depende da pessoa. Não precisamos de uma mesquita, podemos ser mulçumanos dentro de casa, independentemente de onde for”, conclui.

O significado da celebração, no entanto, é bem mais amplo. Segundo Abdoulahat Mbaye, que vive em Passo Fundo, entoar as khassidas é uma forma de glorificar e estar mais perto de Deus. “Dentro das khassidas a gente ora, a gente pede perdão, quando estamos lendo (os poemas), parece que a gente tá mais perto de Deus para pedir misericórdia”. Mas mais do que isso, ele ainda explica que é um jeito que os imigrantes senegaleses encontraram de manter viva sua cultura mesmo estando em países com costumes totalmente diferentes. “A gente está longe do nosso país, por isso a gente organiza essas festas, para poder se encontrar, lembrar nossas origens”. Assim, a espiritualidade se mistura com orgulho que o povo senegalês tem de sua identidade e com a vontade de mantê-la viva. “Se estamos aqui hoje, é porque nós temos Cheikh Amadou Bamba”, afirma.
No prédio do Grêmio 7 de Setembro, os momentos se dividiram entre as refeições (café, almoço e janta), canções e orações. O professor da Universidade de Passo Fundo (UPF), Frederico dos Santos, que acompanhou um grupo de alunos da instituição durante toda a programação, exaltou a importância da celebração, que em 2023 foi realizada no campus I da UPF, em Passo Fundo. Esteve presente também a deputada federal Reginete Bispo, que afirmou seu compromisso com as comunidades e religiões africanas. O presidente da Associação dos Senegaleses de Porto Alegre, Bamba Touré, coordenador da Journée, estima que tenham comparecido à celebração mais de mil pessoas no decorrer do dia. Senegaleses vieram de todas as partes do Brasil, mas em grande maioria de cidades do interior do estado.
Próxima edição anual será em São Paulo
Bamba Touré explica que a celebração começou a ser planejada após o fim do Journeé Khassida 2023, realizado em Passo Fundo. “Começamos a nos organizar desde o ano passado, pensando em receber outras comunidades senegalesas e também os brasileiros”. Ele também ressalta a importância da presença de visitantes. “A gente fica feliz quando outras pessoas que não são da nossa origem vem conhecer a nossa cultura, é uma honra para nós”, comentou.
No encerramento da celebração, ficou definido onde será a próxima sede. Em abril de 2025, ainda com data a definir, a oitava edição acontecerá em São Paulo, capital. Estima-se que apenas no Rio Grande do Sul tenham pelo menos 3,9 mil senegaleses, segundo dados do IBGE de 2017. A recepção no Brasil foi avaliada como positiva. “No Brasil, fizemos muitos amigos e é tudo muito tranquilo, eu gosto muito daqui. Trabalho como comerciante para ajudar minha família que está no Senegal”, relata Aliou Boujf, senegales que já mora em terras brasileiras há seis anos.
A Prefeitura de Porto Alegre, através da Secretaria de Desenvolvimento Social, também esteve presente na celebração apoiando a Associação dos Senegaleses e incentivando as relações étnicos raciais. É o que relata Guilherme Fuhr, servidor que participou da festividade. “Eles (senegaleses) são muito organizados e autônomos, costumam promover vários eventos para que as pessoas compareçam, e nos geram oportunidades ricas para entender melhor essa cultura e a presença deles aqui no Rio Grande do Sul”, relatou Fuhr.

Alimentação é um ponto alto
Em meio às orações e à celebração, o que não pode faltar na cultura senegalesa e, em especial, na Khassida, é a comida. Terra da Teranga, a hospitalidade é uma questão de honra para os senegaleses. Por isso, um dos pontos principais que permeiam a celebração religiosa é a certeza de que todos os presentes estão bem alimentados. O almoço é a principal refeição do dia. Os pratos começam a ser servidos às 8h da manhã, com o café da manhã, e seguem com lanches nos intervalos entre uma refeição e outra.
No calor das salas, já pequenas para a quantidade de pessoas transitando, duas cozinhas em andares diferentes do prédio funcionaram constantemente ao longo do dia. Culturalmente, as mulheres são as principais encarregadas de fazer a comida. No entanto, com a grande demanda, os homens também colaboram na produção: carregando caixotes de frutas ou lavando as enormes panelas de ferro que já haviam sido utilizadas. Sentadas em roda, as mulheres senegalesas cortavam os legumes enquanto conversavam na companhia das crianças. O cheiro forte, característico dos temperos, era sentido por todo o andar.
A cozinheira Maimouna Ndawu, ao ser questionada sobre a base da alimentação senegalesa, conta que, apesar das grandes diferenças culturais entre o Brasil e o Senegal, a distância entre as cozinhas é menor do que parece, e a base das alimentações é praticamente a mesma. “O tempero é o mesmo, porque a gente usa o mesmo tempero daqui. O que vai mudar é que a nossa comida é mais temperada”. Para o almoço da celebração, o prato escolhido foi o thiebou yapp. “É quase igual ao arroz carreteiro daqui. É que esse arroz carreteiro vai por cima, a gente vai botar mais um ingrediente, mais uma decoração”, explica a cozinheira, listando ingredientes como tomate, pimentão e pepino, que ajudam a enfeitar e incrementar o prato.
Com a proximidade da culinária e a pouca adaptação em relação aos temperos, o desafio de quem comandava a cozinha recaiu, principalmente, na quantidade de comida que deveria ser feita. As preparações iniciaram já no dia anterior à celebração, mas as reuniões para decidir as equipes responsáveis por cada setor duraram cerca de um mês. No caso da escolha do prato, a Journée Khassida não tem um prato típico, sendo sempre decidido por aquele que seja mais fácil de ser feito em grandes quantidades. “Como é muita comida, a gente vai escolher sempre uma coisa que é mais fácil, que rende mais e é mais suave para servir”, explica Maimouna.
A milhares de quilômetros de seu país, a Journée Khassida é uma forma que os senegaleses encontraram de manter viva sua fé. Assim, um povo inteiro encurta as distâncias quando rezam juntos. Mas não só uma celebração religiosa, ela é também um culto à identidade senegalesa. Para a maioria dos brasileiros, o que está escrito naqueles folhetos coloridos são rabiscos indecifráveis do alfabeto árabe. Para os senegaleses eles se transfiguram. Está impressa ali sua jornada de fé, cultura e resistência.
