Pelo direito à democracia

Conflitos da Primavera Árabe trouxeram mudanças políticas e culturais a diversos países do Oriente Médio

“Quando a liberdade eclode no espírito de um homem, dez não podem nada contra esse um” (Jean-Paul Sartre, As moscas). 

A onda de protestos no mundo árabe, conhecida como “Primavera Árabe”, virou foco de estudo de historiadores, sociólogos, filósofos e outros pesquisadores, que tentam entender quais são os impactos políticos, sociais e históricos dessas transformações. O movimento na Tunísia e no Egito, derrubou ditadores e provocou uma guerra civil na Líbia, grandes protestos na Argélia, Bahrein, Djibuti, Iraque, Jordânia, Síria, Omã e Iémen e protestos menores no Kuwait, Líbano, Mauritânia, Marrocos, Arábia Saudita, Sudão e Saara Ocidental.

Os protestos têm compartilhado técnicas de resistência civil em campanhas sustentadas envolvendo greves, manifestações, passeatas e comícios, bem como o uso das mídias sociais, como Facebook, Twitter e Youtube, para organizar, comunicar e sensibilizar a população em razão de tentativas de repressão e censura por parte dos Estados.

A onda de mobilizações

Tudo começou em 17 de dezembro de 2010, quando um comerciante tunisiano ateou fogo ao próprio corpo em protesto contra o desemprego e condições de vida no país. Mais tarde ele acabaria morrendo, o que desencadeou uma série de manifestações, que logo se espalhariam para os países vizinhos, como destaca Cássio Menezes, licenciado em História pela UPF. “A imolação de Mohamed Bouazizi foi o ponto de partida para uma revolta que derrubou a ditadura de Zine el-Abidine Ben Ali na Tunísia, em janeiro. Menos de um mês depois, Hosni Mubarak caía no Egito, levando consigo um regime que durava três décadas. Em outubro, o líbio Muamar Kadafi foi morto por opositores que travaram, ao longo de meses, uma violenta guerra civil no país. E no Iêmen, Ali Abdullah Saleh transferiu o poder em novembro após meses de protestos”, destaca.

Mas a revolução que começou em 2010 não acabou. A Síria, por exemplo, tem sido palco de violentos conflitos. O regime de Bashar al-Assad, que está no poder há 11 anos, se mantém firme e é acusado de oprimir violentamente as manifestações populares. A ONU diz que mais de 5 mil pessoas morreram nos conflitos e acusa o regime de crimes contra a humanidade.

Mesmo com todas as lutas para derrubar ditaduras e garantir o direito à democracia, os conflitos da Primavera Árabe não trouxeram mudanças apenas na área política, como destaca Menezes. “É também um marco cultural, na medida em que a luta pela liberdade foi uma grande causa. Isto numa era de novos tempos, em que a informação e o conhecimento não apenas possuem uma dinâmica maior e global, mas inclusive são mais críticas e, assim, capazes de representar mais humanidade e menos intolerâncias. Toda revolução não apenas traz mudanças em bases materiais, mas consigo também reflete novas visões de mundo e valores”.

A imprensa teve um papel fundamental na busca por deixar visível ao mundo o que acontecia no Oriente Médio, informando sobre as manifestações e a consequente repressão. No entanto profissionais correram sérios riscos quando as autoridades trataram de bloquear a propagação de notícias.

A Imprensa e a Primavera Árabe

Grandes coberturas jornalísticas foram realizadas por veículos de todo o mundo acerca das revoluções do mundo árabe. Não é para menos: Existem historiadores que dizem que a Primavera Árabe foi (e continua sendo) a maior revolução popular dos tempos modernos. Cobrir esses acontecimentos que mudam o rumo de uma sociedade é o desejo de boa parte dos jornalistas e aspirantes. Mas estes precisam ter em mente que o perigo sempre existe.

O Comitê de Proteção ao Jornalista, com sede em Nova York, contabilizou que o número de jornalistas mortos durante a Primavera Árabe chegou a 17. Os países mais perigosos para a imprensa foram Paquistão (7 mortes), Iraque (5 mortes) e Líbia (5 mortes). O CPJ também revela que 45% dos jornalistas presos no mundo estão nessa região.

A grande imprensa brasileira deu bastante destaque para esses conflitos e enviou seus correspondentes para acompanhar in loco o desenrolar dos fatos. O enviado de Zero Hora, jornal de maior circulação no Rio Grande do Sul, foi Rodrigo Lopes.

Conversamos com Rodrigo, que nos contou como foi fazer a cobertura desses conflitos que mudaram o rumo da história dos países envolvidos. Confira.

Tu estiveste em alguns conflitos da Primavera Árabe como na Tunísia e na Líbia. Qual é o principal desafio de fazer coberturas desse porte?

Para uma cobertura internacional, o mais importante é planejamento. Saber que tipo de abordagem faremos. No Zero Hora, por exemplo, sempre buscamos fugir das agências internacionais, dos textos muito iguais. Buscamos um olhar exclusivo do fato internacional, e, ao mesmo tempo, que aproxime o fato internacional do nosso público. Em alguns casos, há risco à segurança. Então, é preciso um cuidado extra: avaliação criteriosa se é possível entrar em um território conflagrado, etc. São muitas variáveis que só o repórter em campo tem condições de avaliar. Lembrando sempre que nenhuma reportagem vale uma vida. Logo, a segurança é fundamental.

Situações de conflito como essas requerem certa frieza por parte do jornalista, para que o trabalho possa ser realizado? Como tu lidas com isso? É difícil manter o foco?

Rodrigo Lopes entre ruínas, no Haiti

Não acredito em frieza. Ojornalismo é o templo da subjetividade. A emoção deve estar presente no texto, sob pena de fazermos um jornalismo frio, descolado da realidade. O que não é desejável é que o repórter perca o foco. É natural ter medo, pensar e avaliar várias vezes a questão da segurança, a entrada em território perigoso. Mas também é importante não se tornar frio. Estive em alguns episódios difíceis, o meu momento de maior choque foi cobrir o terremoto no Haiti. Quando cheguei a Porto Príncipe, havia 200 mil mortos nas ruas. Não é possível ter sangue frio. Mas a gente tem que tentar manter a calma e relatar o drama da população de uma forma verdadeira.

Qual foi o teu primeiro sentimento ao ser escalado para estar em meio aos conflitos?

Um misto de ansiedade, expectativa e um pouquinho de medo. Jornalista que diz que não tem medo está mentindo. O medo é aliado. É ele que nos diz para não avançar em determinados caos. É preciso estar atento aos sinais. Mas sempre quis cobrir uma guerra ou um evento para o qual o mundo está olhando. É uma sensação de testemunhar a história acontecendo na nossa frente e, ao mesmo, tempo uma oportunidade de, ao narrar o que estamos vendo, contribuir para que o resto do mundo saiba o que está acontecendo – violações de direitos humanos, etc…

Como cidadão, qual é a tua opinião sobre essas revoluções que nascem da luta pela democracia?
Acho que cada povo deve lutar pela sua independência, democracia, liberdade. Acho que há uma tendência do Ocidente em tratar o mundo árabe como igual. E não é: o Egito é diferente da Síria, que é diferente da Líbia, que é diferente da Tunísia, etc… Acho que devemos ter um imenso respeito por cada nação, por cada povo e cultura. Respeitar principalmente suas diferenças, e não nos sentirmos, como Ocidente, mais desenvolvidos do que outros povos.

Em relação às tuas coberturas internacionais, qual delas mais te emocionou até hoje?
O Haiti foi a cobertura mais chocante. Andar pelas ruas de Porto Príncipe em ruínas, no país mais pobre das Américas, o cheiro de morte, os corpos nas calçadas. Tudo isso me emocionou bastante.

Como é voltar para o Brasil depois de ver o terror que existe lá fora?
Eu sempre volto muito reflexivo, vejo que temos no Brasil tudo para fazer desta nação um grande país. E nos perdemos em escândalos de corrupção, em gente tentando passar os outros para trás. Fico triste, fico na verdade revoltado com injustiças. Acho que o que vejo lá fora, se não me ajudou a me transformar em um profissional melhor, certamente me tornou um ser humano melhor.

httpv://www.youtube.com/watch?v=KOm-2JhmbnI&feature=youtu.be

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