Muito além do crime

Além de trazer confiabilidade na resolução de um crime, é função da perícia criminal desvendar o que escapa aos olhos nus

Em “A queda”, o existencialista Albert Camus escreveu que “cada homem atesta o crime de todos os outros.” Na filosofia tal afirmação pode ser objeto de estudo, mas no mundo tangível, onde existem leis criadas e aplicadas com rigor pela sociedade, não existe melhor testemunha do que uma prova recolhida na cena do crime. Uma impressão digital ou uma gota de sangue não mentem. Os vestígios encontrados contam os fatos. Por isso, a perícia forense é imprescindível para a resolução de casos criminosos e o apontamento de seus culpados.

Se “Jack, o Estripador” vivesse na atualidade, seria pego em poucos dias e sem grandes esforços. Gotas de sangue, fibras e cabelos não escapariam do olhar atento e treinado de um perito. A essência de seu trabalho ainda é a mesma, obter a prova material do delito, o que mudou foi a tecnologia. Microscópios reconhecem os padrões milimétricos e até menores de um fio de cabelo. A papiloscopia, ciência que estuda as impressões digitais, já existe há mais de 300 anos, mas os computadores aumentaram a velocidade de reconhecimento, além da possibilidade de um banco de dados digital.

Cada estado do Brasil possui seu instituto de criminalística. Em SP é a Superintendência da Polícia Técnico Científica (SPTC). No RS, o Instituto Geral de Perícias (IGP) foi criado no dia 7 de julho de 1997 e juntamente com a Brigada Militar, Polícia Civil e Susepe, é vinculado à Secretaria de Segurança Pública do estado. As perícias médico-legais e criminalísticas, além de serviços de identificação, são funções do IGP. Atualmente, a instituição conta com aproximadamente 800 profissionais, entre eles peritos, fotógrafos criminais e papiloscopistas. O número é baixo e estão previstas mais 800 vagas a serem preenchidas através de concursos, é o que comenta o inspetor André Luiz Martinelli, supervisor técnico do IGP-RS. Além de aumentar o efetivo, outro desafio é a regionalização de suas atividades, visto que boa parte da demanda está nas cidades do interior.

Profissão perito

A área de atuação de um perito é bem abrangente. As perícias se dividem em externas, realizadas no local do crime propriamente dito, e as internas, que são feitas nos laboratórios e demais estruturas. Entre os delitos periciados estão: adulteração de veículos e de armas de fogo (seja por raspagem ou obliteração mecânica), adulterações em celulares, em equipamentos de informática (recuperação de HDs queimados), documentoscopia (fraudes em documentos, falsidade ideologica), grafotécnica e grafoscopia (caligrafia), e retratos falados através do relato testemunhal (vide infográfico no final da matéria para ver os objetos utilizados na perícia).

A reprodução da imagem de um suspeito envolve muito mais que a fisionomia do rosto. Na maioria das vezes, o trauma que a vítima vivenciou ainda está latente, o que pode ocasionar um bloqueio nas lembranças, é o que explica Martinelli. “Essa é uma preocupação quando está se elaborando um retrato falado, de verificar até que ponto a vítima pode expressar as feições agravadas, assim o profissional pode elaborar um retrato mais próximo da realidade”. É de extrema importância o retrato ser o mais fiel possível para que inocentes não sejam confundidos com um criminoso.

Se a elaboração do retrato falado precisa de muita atenção, a internet é um meio que também exige cuidados. Crimes ocorridos no meio deixam registros, mas falta aparato judiciário para enquadrar os autores. “A ausência dos tipos penais também dificulta, porque muitas vezes não existe a previsão de um crime. A tipificação de um crime precisa ser feita por uma lei no qual seja possível enquadrar o ato ilícito cometido pela internet. Esse é um vazio legislativo e cabe ao legislador preencher esta lacuna”, comenta o inspetor. A perícia consegue encontrar os culpados e seus rastros, mas a justiça não tem como executá-los judicialmente por causa de brechas na lei.

[stextbox id=”grey”]Perícia na televisão

A vocação para a escolha da profissão é importante, mas muitos foram inspirados por seriados a escolherem a criminalística como ofício. A perícia está presente na ficção há bastante tempo. No começo dos anos 90 surgiu Lei & Ordem, que se dividia na investigação do crime e na aplicação e execução da lei. O seriado continua no ar até hoje e teve vários spin-offs lançados, com destaque para Special Victims Unit, que trata especificamente de crimes sexuais.
Ainda na mesma década, Fox Mulder (David Duchovny) e Dana Scully (Gillian Anderson) caçam conspirações e homenzinhos verdes em Arquivo X. O seriado criado por Chris Carter é focado na ficção, mas também mostra inúmeras atividades relacionadas com uma investigação forense.
Mas a febre em cima da profissão veio no começo dos anos 2000. CSI: Crime Scene Investigation juntou uma legião de fãs e se tornou uma das séries mais relevantes da década. Um gênio em sua profissão, o CSI Dr. Grissom (William Petersen) protagonizava inúmeras investigações na cidade de Las Vegas. O show também ganhou spin-offs, como CSI: Miami e CSI: New York.

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Ácido desoxirribonucléico

Durante um tempo, o exame de DNA foi tido como a principal ferramenta de investigação nas perícias criminais. A evidência na mídia em casos famosos despertou o interesse no exame que confere uma precisão de 99,9% na identificação da pessoa, conforme o site Genética Médica. O ácido desoxirribonucléico, nome científico do DNA, pode ser recolhido em qualquer vestígio humano. Contudo, amostras de sangue são os melhores e mais confiáveis materiais para uma análise. A pesquisa científica também é um ponto forte da perícia. O IGP do RS desenvolveu uma técnica para extração do DNA através de uma amostra de cabelo sem precisar do bulbo capilar, em termos simples a raiz do cabelo.

Mesmo que este elemento seja relevante no cenário geral, o inspetor Martinelli alerta que a exposição exagerada pode acabar atrapalhando. “O DNA é uma prova importante, mas existem outros elementos relevantes na cena de um crime como as impressões papilares, objetos, etc. A tendência é maximizar a importância de um único elemento em detrimento dos outros”. Limitar o trabalho da perícia somente em cima do DNA é errado, pode desviar a atenção da visão geral e levar um inocente para cadeia. A investigação pericial depende de um conjunto de fatores para obter sucesso.

O significado da palavra sucesso pode variar bastante na justiça, já que culpados conseguem sair impunes de seus crimes inúmeras vezes. Já para um perito ela significa mais do que um veredito. A solução de um crime através das técnicas forenses é a prova de que ninguém é mais esperto que a ciência.

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