“Maus”: retrato da essência humana

A II Guerra Mundial parece uma lenda, uma mitologia indesejável nos tempos de hoje. Talvez seja uma visão ingênua e pouco erudita, mas apesar disso nunca duvidei da força de suas histórias. Sem ter como provar a realidade da maioria das histórias que ouvi estou certo de uma coisa: são histórias repletas de verdade. Sejam ficção ou não. A última história da II Guerra que acessei tem um fluxo intenso de verdade em suas veias, uma verdade tão forte que faz o leitor mergulhar em seu universo e partilhar cada mínimo instante: desde o sabor ardente de uma dose de vodka até o vazio dolorido de um estômago que não come há semanas. Sem mais delongas, esta história se chama Maus.

Maus. Rato em alemão. O termo era usado pelos nazistas para designar judeus, principalmente os da polônia. Este termo batiza o romance gráfico não ficcional de Art Spiegelman, quadrinista e escritor eminente. Em Maus, Spiegelman revoluciona a nona arte fazendo uma espécie de biografia-reportagem de seu pai, Vladek Spiegelman, um dos sobreviventes de Auschwitz – conjunto de campos de concentração nazista- eternizado na memória mundial pelas atrocidades lá cometidas. A obra mais afamada de Spiegelman traz uma abordagem original e aprofundada, levando ao leitor muitas referências e informações para compreender uma das épocas mais negras da história. Essa abordagem, apesar de expressar claramente o sofrimento de Vladek e de todo o povo judeu, também expõe o âmbito cultural da II Guerra na Europa Central. O exemplo mais forte disso é a forma como Spiegelman retrata os personagens e suas etnias: os judeus são ratos; os alemães são gatos; poloneses são porcos e norte-americanos são cães. Uma simples listagem dessa prática, ou uma visão superficial dela, podem sugerir que o autor soube empregar um humor sarcástico e inteligente na retratação dos personagens. Sem dúvida Maus tem seus momentos irônicos, mas mesmo estes estão estritamente ligados ao caráter melancólico e devastador da guerra. Além disso, no decorrer da leitura, percebe-se que a associação dos animais e das etnias está perfeitamente de acordo com a essência de suas nações, sendo assim uma retratação sincera, justa e profunda. Toda essa carga bem elaborada de relato histórico e visão cultural garantiu a obra o Prêmio Especial Pulitzer, em 1992. Até então é a única história em quadrinhos que ostenta um prêmio comumente oferecido a grandes reportagens e jornalistas.

“A última história da II Guerra que acessei tem um fluxo intenso de verdade em suas veias, uma verdade tão forte que faz o leitor mergulhar em seu universo e partilhar cada mínimo instante: desde o sabor ardente de uma dose de vodka até o vazio dolorido de um estômago que não come há semanas.”

Todos estes dados já contribuem para que as pessoas se interessem pela história de Vladek, mas este relato guarda muitas sensações e sentimentos que podem surpreender o leitor. Ao ler Maus cenários muito claros da essência humana vêm à tona. A durabilidade de alguns sonhos, a sobrevivência pulsando em momentos que a vida se mostra estúpida e inválida; a capacidade de superar a si mesmo e de superar qualquer situação para ajudar outras pessoas; a virtude de conhecer as coisas e transformar todo conhecimento em real sabedoria; e a virtude maior de preservar a sensibilidade e os sentimentos mais puros por outra pessoa, rompendo as fronteiras da dor e dos anseios. Maus mostra a crueldade imunda do homem, suas fragilidades, sua pureza e mostra – apesar das muitas facetas tristes e horrendas- o quanto o homem é belo. Limitado e simples… talvez seja esse a origem de sua beleza.

[xrr rating=3/5]

Jean Quevedo
jean.o.quevedo@gmail.com

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